Frenesi I

“Então se lembrou de uma frase: não tente me convencer que não estou sofrendo.”

Lá estava ela, com uma blusa preta a qual não vivia sem, boina vermelha e uma mala azul marinho estacionado ao lado do seu tênis surrado, em baixo dos braços uma pequena bolsa onde se afugentava os objetos mais desnecessários desse planeta. Ela mesma os achava desnecessários, mas fazia questão, não sabia o porquê.
Estava chovendo e ela olhava atenta pela janela de cada casa, como quem procura algum lugar familiar. Em uma das janelas viu um rapaz que passava de um lado para o outro, recém saído do banho, com sua caminha nas mãos, exibindo seu peitoral quase que infantil, de tão magrinho. Uma calça branca que parecia desenhada exclusivamente. Da rua foi capaz de jurar que conseguia sentir seu cheiro, cheiro esse que não era somente devido ao banho de mais de uma hora, cheiro de algo (ou melhor: alguém) totalmente limpo, por dentro e por fora, chegava a brilhar. Se decidiu, era ele, era aquele o próximo lugar.
Sua memória limitava-se a desaparecer, e não conseguia descrever precisamente onde estivera antes de chegar ali. Lembrava-se vagamente de alguns nomes. Na verdade ela obrigava-se a esquecer, era um processo sagrado. Depois de meses remoendo as lembranças já inexistentes.
Não houve tempo para aquelas formalidades ao conhecer alguém, com ela era tudo muito rápido. Houve somente um olhar que suplicava um colo, um olhar que não havia como fugir, ou simplesmente fechar a porta da frente. Ele de uma forma muito discreta a convidou para entrar. Creio que não esperava que ela realmente aceitasse, mas quando voltou à realidade ela estava sentada no chão da sala, como uma criança. Ela reparou que ele só parecia ser um ‘homem-feito’ de longe, pois de perto, enquanto eles assistiam TV, ela notou na sua gargalhada, e como ele deixava a boca entreaberta quando prestava atenção. Era lindo. “Fique até quarta”, “Você tem que ver o céu daqui, eu queria dormir lá fora qualquer dia desses, para ficar olhando as estrelas” ele disse, encantadoramente. Para ela não importava o assunto, a única coisa que ela fazia questão era de ouvi-lo, nunca na vida uma voz teria agradado daquela forma.
Quando acordou, sua primeira imagem foi o tênis dele espalhados com os dela pelo quarto, estava sozinha. Pensou por alguns instantes na alegria que sentia e decidiu encarar o corredor. Entrou no banho e decidiu desfazer-se completamente do que era antes, queria ser limpa por dentro e por fora, como ele. E depois daquele momento, as horas seguintes, a todo o momento precisava se escorar em paredes e portas, por causa da vertigem que sentia por estar tão leve. Como se não houvesse mais nada dentro de si, nem ao menos os ossos para sustentá-la. Estava livre de tudo, só sentir a o vento por todo seu corpo, vento esse que só refrescava, nunca esfriava.

(...)